sábado, 12 de maio de 2007

Conto: Os Muros de Jericó - 4ª parte

4.Em pé de guerra.

Zagor olhou de novo para Percival sentado numa espécie de cama em sua cela, com o rosto abaixado, na direção do chão, curvado para a frente, os braços apoiados nos joelhos, as mãos juntas e depois separadas.
O homem tinha uma expressão perdida. O rosto quase estava sem traços, sob a vistosa atadura na cabeça.
Os soluços de Rhoda chamaram a atenção do Espírito com a Machadinha e o fizeram voltar para o escritório do xerife, de onde provinham. Zagor percorreu o pequeno corredor e se mostrou no lugar, onde Sam Reilly estava sentado em frente à sua escrivaninha, com a intenção de redigir um auto de prisão cheio de cancelamentos e de marcas de tinta.
Chico, em pé junto a ele, via o que o outro escrevia, torcendo o nariz com ar de crítica. Rhoda March chorava em um banco apoiado contra a parede.
- Seus filhos ainda vão comer? - Perguntou Zagor, dirigindo-se à mulher.
- Eles vão almoçar no albergue. - Respondeu Rhoda, alçando o olhar brilhante. Depois enxugou os olhos com o lenço que estava amassado em uma das mãos. Com ele, empoou também o nariz. E então perguntou a Zagor:
- Por que a memória não volta? Quando recordará quem é... e quem somos?
- Não sei. - Replicou Zagor - Em casos como o de seu marido, diz-se que, se a memória não volta imediatamente, depois é difícil esperar uma recuperação rápida e já passaram quatro dias.
- Em dois dias começa o processo. Percival deve poder defender-se! Dizer que coisa aconteceu, que não foi ele a matar aquele Buzz.
- Mas há provas contra ele, senhora March - falou o xerife levantando o rosto e deixando a caneta sobre a folha - e visto que Buzz era um bounty killer e seu marido fugia com um cartaz de recompensas sobre a cabeça, taí o motivo do crime!
Reilly tornou a abaixar os olhos para o auto de prisão e viu que onde tinha deixado a caneta havia uma bolha de tinta. Sentiu Chico conter com muito custo uma risadinha e voltou-se para fulminá-lo com uma olhada.
Rhoda apertou de novo o lenço na mão, espremendo-o até deixar os dedos vermelhos.
- A recompensa deveria ser por mister Kaplan. - Sibilou a mulher.
- Quem é mister Kaplan? - Perguntou Chico aproximando-se.
- O proprietário da farmácia onde Percival trabalhava como vendedor, em Chicago - respondeu Rhoda - ou melhor, onde trabalhava como escravo. Kaplan era despótico, um verdadeiro abutre! Explorava meu marido de todas as formas, dava-lhe um salário humilhante, fazendo passar como uma esmola. Deixou-nos com fome por anos!
Uma lágrima silenciosa e solitária escorregou, quente, pela face esquerda da mulher.
- Vocês poderiam ter ido para outro lugar. - Comentou o xerife.
- Você acha que nós não havíamos pensado nisso? Era o nosso sonho. Mas o menor dos meus filhos ficou doente por longo tempo. Kaplan dava os remédios para curá-lo, usando isso como meio para manter Percival com ele.
- Por que tanto interesse?
- Era um vendedor esperto, hábil nas dosagens e na confecção dos preparados. Kaplan não poderia substituí-lo tão facilmente. Além disso, podia servir-se dele por um pedaço de pão!
- Se seu marido era tão bom assim, poderia ter encontrado uma outra farmácia para trabalhar.
- Em Chicago, no seu ambiente, Kaplan ditava a lei. Nenhum outro farmacêutico aceitaria Percival, indo de encontro a Kaplan!
- Entendo. Uma situação sem saída.
- Quando o menino melhorou, decidimos deixar a cidade. Queríamos abrir uma farmácia toda nossa em qualquer lugar na fronteira. Mas para fazê-lo precisávamos de dinheiro. E não o tínhamos.
- E então seu marido o roubou de Kaplan.
- Ele apenas ficou com o dinheiro referente aos salários atrasados que Kaplan deveria ter pago e não o fez.
O xerife parou de escrever de novo e olhou para a mulher.
- Em todo caso, em dois dias não o processaremos por esse furto, mas por homicídio - disse. E na folha gotejou uma outra mancha de tinta.
- Buzz não foi morto por ele e Groove caiu sozinho no penhasco. - Replicou Rhoda.
Zagor estava massageando o queixo, pensativo, escutando. Parou e disse, voltado para Reilly:
- Isso é o que eu também acho, Sam. Eu já disse. Por certo, March não se jogou para baixo para matar seu adversário. Eles caíram por causa da escuridão, sem perceber o perigo.
Zagor fez uma pausa, como para pensar bem antes de continuar falando e depois acrescentou: - E se devo ser sincero, começo a ter minhas dúvidas sobre a morte de Buzz.
O xerife deu um pulo tão violento que um joelho bateu na mesa. O tinteiro virou e a tinta escorreu pelo auto de prisão.
- Que coisa você quer dizer? - Perguntou Reilly arregalando os olhos.
Até Chico pareceu surpreso.
- Que Buzz poderia realmente não ter sido morto por Percival. - Respondeu Zagor.
- E agora essa! - Falou o mexicano, perdendo a calma. - Apesar de todos os indícios?
- Sim, justamente porque poderiam ter sido colocados por alguém.
- Por quem?
- Por Groove, por exemplo.
Rhoda March olhou para Zagor com olhos alegres. Reilly levantou o tinteiro, mas não percebeu que a tinta, depois de ter derramado pela mesa, estava gotejando em suas calças. Chico coçou a cabeça, perplexo.
- Escutem-me - explicou o Espírito com a Machadinha - não digo que as coisas tenham acontecido desse jeito, mas quero propor-lhes uma reconstituição dos fatos diversa daquela que demos por boa até agora.
- Vejamos - suspirou o xerife.
- Tem alguma coisa que não está clara e há as meias frases balbuciadas por Percival durante o delírio. Vocês se recordam delas, não?
- Sim. Falava de uma gruta e de certos índios.
- Exato. Ora, nós não sabemos onde March ficou durante o período em que o procuramos sem encontrá-lo em nenhum lugar. Antes de reaparecer com Groove nos seus calcanhares. Justo?
- Justo. E você sabe que lugar é esse?
- Poderia ter ficado prisioneiro em uma gruta, de onde os índios o libertaram, como ele procurou dizer-nos.
- Prisioneiro?
- Sim - prosseguiu Zagor - contido lá dentro por Groove, que pensava em entregá-lo ao xerife somente depois que a recompensa fosse aumentada ao ponto justo. E para fazê-la aumentar talvez tenha matado Buzz, achando o modo de colocar a culpa em Percival. Os índios atrapalharam seus planos, e ele começou a seguir a presa que fugira de suas garras, tendo então o fim que sabemos.
- Muito complicado! - gritou o xerife, dando uma pancada na mesa que fez balançar de novo o tinteiro, que não esguichou tinta somente porque já estava vazio. - Não digo que seja impossível, mas por que deve andar a pensar uma coisa desse gênero quando há uma explicação muito mais simples e que está perfeita?
- Por um motivo bem preciso - respondeu Zagor - porque estou convencido de que Rhoda tenha razão, quando disse que seu marido foi acusado de ser um ladrão, mas não um assassino, por certo!

O vilarejo dos Sauk ficava na margem de uma torrente. As cabanas eram uma série de colunas cobertas de esteiras de bambus e de cortiças. Algumas tinham o teto de caniço. Entre as construções não se via ninguém. Guerreiros, squaws e crianças pareciam desaparecidos, como se o lugar estivesse abandonado. Mas o vento trazia gritos, choros e lamentos. Vinham de um lugar abaixo não muito distante, depois que a torrente do rio fazia duas curvas.
Ali ficava o cemitério da tribo. Entre grandes rochas ásperas e duras, ao abrigo de uma cadeia de escolhos e fora do alcance das cheias do curso d`água erguiam-se lúgubres tapumes de paus finos, erigidos para sustentá-los com algumas dezenas de cadáveres envoltos em peles corroídas pelo tempo, muitas tão desgastadas que deixavam descobertos quase por inteiro os esqueletos dos mortos mais antigos.
Dois tapumes recentemente construídos expunham, ao contrário, dois corpos enrolados em peles de animais, com faixas e turbantes estreitos em volta dos membros que nunca mais se movimentariam.
Uma pequena aglomeração silenciosa completava o quadro de choro de algumas mulheres: uma mãe, duas esposas, duas filhas, que puxavam os cabelos e se arranhavam a face e as mãos, gritando e gemendo.
Um pele-vermelha robusto, não mais jovem, do rosto enrugado queimado pelo sol, com um casaco de pele de cervo em suas costas, tendo no peito um colar de pêlo de lontra com uma coleção de garras de urso e um turbante de plumas na cabeça, interrompeu a pantomima com um solene gesto do braço.
- Que os Sauk escutem Kyyo`Kaga, o seu chefe! - Disse.
Um murmúrio difuso primeiro se levantou timidamente, depois ecoou como uma onda na proximidade da praia, depois se quebrou, esvaiu-se em um sussurro e se perdeu.
- O sangue de dois nossos guerreiros grita por vingança aos deuses! - disse, ou melhor, proclamou o homem com o turbante emplumado. Os guerreiros mais próximos anuíram com a cabeça. Kyyo`Kaga olhou para os tapumes onde jaziam os cadáveres pelos quais as mulheres choravam, inspirou profundamente como para ter pulmões mais cheios e para dar maior sonoridade ao seu discurso, depois prosseguiu:
- O Grande Espírito não voltará a mostrar-se benévolo para o povo Sauk até que os aranhas brancos tenham pago caro pelo seu gesto!
Os Aranhas, Vé`ho`e, assim muitos Sauk chamavam os europeus desde os tempos dos seus primeiros encontros com os invasores de sua terra. Não era um demérito, inventado para sublinhar a ruindade ou as traições dos novos aventureiros. Era, antes, um cumprimento. Todos os peles-vermelhas consideravam a aranha uma criatura hábil, engenhosa, astuta: e os mercadores de peles franceses contra os quais os índios primeiro lutaram tinham coisas que eles nunca haviam visto antes: armadilhas, espelhos, relógios, lâmpadas. Eram hábeis, engenhosos e astutos exatamente como as aranhas que sabem construir complicadíssimas teias que aprisionam os outros insetos, enquanto elas caminham pelo seu trabalho sem sofrer danos. Os homens brancos tornaram-se assim os Vé`ho`e. Uma pena que entre as coisas que sabiam construir houvesse também os canos trovejantes, as armas de fogo. As mesmas que tinham matado o jovem guerreiro e o velho caçador.
- Nenhum Sauk terá paz até quando o assassino dos nossos irmãos não tenha sido escalpado... e a sua cabeleira exposta em uma longa haste plantada no centro do nosso vilarejo! E, se não tivermos a sua, a substituiremos por aquelas de outras aranhas, todos aqueles que atravessarem o nosso território até que os corpos nos tapumes tenham sido consumidos!
Kyyo`Kaga pronunciou as últimas palavras com a ênfase devida a uma declaração de guerra. Os Sauk a interpretaram justamente nesse sentido. Os gritos se elevaram ao céu como se tivessem sido arremessados pelos braços esticados que agitavam as lanças.

Zagor não era um cavaleiro excepcional. Não porque não tivesse qualidade, mas sim porque não lhe ocorria de cavalgar freqüentemente. A sua cabana ficava em uma ilhota no centro de um pântano chamado Mo-hi-la, ou seja, “terra que treme”. Os índios, que chamavam Zagor de “Espírito com a Machadinha”, consideravam aquele lugar como o reino dos espectros e tomavam muito cuidado ao se aproximarem. Além do mais, quem não conhecia perfeitamente o percurso a fazer pela água que envolvia a ilhota corria o risco de afundar nas areias movediças. Quase impossível mover-se a cavalo, pelos arredores: por isso o Espírito com a Machadinha não tinha um. O pântano era o coração da exterminada floresta de Darkwood, lugar selvagem coberto por um emaranhado de árvores densas, acidentado por montanhas e penhascos: chegar lá por canoas ou mesmo a pé era mais simples que montar num quadrúpede para atravessar as escarpas ou pelo meio da fechada floresta. Somente lá onde a floresta quase não existia, alargando-se em amplas planícies que terminavam por abrir-se para as grandes pradarias, somente lá se podia usar o cavalo com evidente vantagem. Por isso Zagor cavalgava pouco. Mas agora o fazia. Não havia florestas em volta de Jericó, as colinas eram poucas e os cavalos podiam percorrê-las por longos e estreitos caminhos desenhados pelas patas dos que iam e vinham da cidade. Como nos dias precedentes, o cavalo lhe tinha sido emprestado por Sam reilly. Desta vez, para dizer a verdade, com um pouco de má vontade. O xerife tinha torcido a boca quando Zagor anunciou que partiria para o vilarejo dos Sauk.
- Você quer andar pelo território indiano? - Perguntara Reilly, arregalando os olhos.
- Sim. Os peles-vermelhas dos quais March se recordou em seu delírio só podem ser Sauk. Apenas eles vivem nestas montanhas. Pedirei informações a eles sobre uma certa gruta e um homem que estava dentro dela.
- Você é maluco! Está confiando no balbuciar de um homem que bateu a cabeça a ponto de ter perdido a memória. Você já pensou nisso?
- É claro. Ele não pode defender-se sozinho. Alguém deve tratar de ajudá-lo.
- O processo começará em dois dias. Isso já foi determinado e eu não tenho o poder de prorrogar o prazo!
- Dois dias é quanto me basta!
Reilly passou uma mão pela fronte suada, usando o suor para untar os cabelos como se fosse brilhantina. E voltou-se com veemência para Chico.
- Chico! Convença-o de que isso é uma estupidez!
- Eu? Desde que o conheço procuro fazê-lo entender, mas sempre segue sua intuição. A estupidez foi minha, porque aceitei servi-lo como secretário.
O xerife deu um grunhido.
- Você é um danado de um cabeça-dura, Zagor! Eu...
- Você me empresta um cavalo e não pensa mais nisso!
Quando saltou em sela, antes de esporear o cavalo em direção às montanhas, Zagor saudou Chico e o xerife com um gesto, depois sua atenção se concentrou na janela do escritório.
Era Rhoda March quem olhava para ele através dos vidros. Impassível, silenciosa, mas com os olhos cheios de gratidão.
Aqueles olhos o Espírito com a Machadinha ainda recordava, enquanto entrava nas terras dos Sauk, incitando o cavalo a atravessar a torrente que demarcava os confins dessas terras. Os Sauk não eram uma tribo particularmente belicosa. Zagor esperava ser recebido amigavelmente. Mas, enquanto cavalgava entre as árvores de um pequeno matagal atravessado por uma trilha, sentiu de repente uma sensação de perigo. Às vezes, ocorria de ele ter percepções desse gênero. E raramente, para não dizer nunca, elas chegavam por engano.
Havia alguma coisa errada. Uma ameaça à espreita. Zagor olhou atentamente ao seu redor. Sentiu o ar sibilar e abaixou-se instintivamente para o lado, quase caindo do cavalo, para esquivar-se de uma flecha que vinha na sua direção.
- Por mil escalpos! - exclamou Zagor, já empunhando na mão sua machadinha.
De duas árvores em frente a ele, seis ou sete guerreiros Sauk saltavam com armas nas mãos. Dois tinham arcos, outros dois, tomahawk, outros, as lanças, somente um empunhava um fuzil. Uma lança foi arremessada não contra ele, mas sim contra o cavalo: para deixá-lo a pé e impedi-lo de fugir, evidentemente. Zagor, contudo, já estava com a machadinha. Foi com ela que conseguiu golpear no vôo a flecha que se aproximava, sibilante, e desviá-la para o solo.
O cavalo se assustou, amedrontado. Nitriu sonoramente, espantado com os gritos dos peles-vermelhas. Zagor não tentou nem mesmo acalmá-lo, desceu dele e deixou que fugisse. O que quer que acontecesse a ele, pelo menos o animal teria conseguido salvar-se.
Enquanto saltava, uma nova flecha veio em sua direção e ele se esquivou, caindo ao chão. O pele-vermelha com o fuzil disparou para o solo, onde Zagor se encontrava. Zagor rolou sobre si bem a tempo de evitar ser atingido pelo disparo. Depois esticou o braço e jogou a machadinha contra o índio, golpeando-o em plena fronte e fazendo-o cair por terra junto com o fuzil. Um dos Sauk estava às suas costas e gritando saltou sobre ele empunhando o tomahawk. Zagor percebeu a tempo, bloqueando o braço armado e fez o índio voar sobre si mesmo, caindo à terra diante dos próprios pés. Abaixou-se e pegou o índio, fazendo-o de escudo.
- Parem, irmãos vermelhos! - Gritou, em perfeito dialeto Sauk.
Um pouco pela surpresa de escutarem palavras em sua língua, um pouco pelo medo de atingir o próprio companheiro, um pouco pelo tom peremptório da voz do Espírito com a Machadinha, os peles-vermelhas hesitaram, com as armas na mão apontadas para Zagor.
- Nenhum de vocês me conhece? Sou Za-gor-te-nay, amigo dos povos vermelhos de Darkwood! E venho em paz!
Um dos Sauk voltou-se para os companheiros.
- Woah! Za-gor-te-nay... o Espírito com a Machadinha!
Um dos outros índios abaixou a lança com a qual se armara.
- É verdade... - já ouvi falar de sua roupa e dele por longo tempo!

Fim da 4a parte.

Texto traduzido por José Ricardo do Socorro Lima

Nenhum comentário: